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O Alfarrábio - Capítulo 1

A tarde findava-se na capital de Mato Grosso, enfeitada por árvores de galhos dançantes e casas art decó de tamanhos variados, nas quais os últimos raios oriundos do sol incidiam. O céu tingia-se de modo belo, variegando em tons de amarelo, encarnado e cor-de-abóbora. O ar seco e quente castigava os moradores.

Nas ruas, apenas o estalar das folhas ao vento. O silêncio aparentava um abandono contínuo e antigo. A inação sonora foi cessada por um tinir metálico suscitado por um carro chevrolet de aparência degradante, o qual abandonou dois adolescentes nas proximidades de um casarão na nova Avenida Getúlio Vargas.   

Os jovens formavam um casal de irmãos gêmeos, trocando caretas diante da construção incomumente decorada por linhas curvas e geométricas. O rapazote tateou seus bolsos em procura de um papel, extraindo um bilhete amolgado com seus dedos esguios.

– O endereço está correto, Leopoldo? 

– Segundo a mamãe, sim – afirmou, abalroando a porta sem aguardar mais falas de sua irmã.

Um idoso de tez levemente avermelhada, cabelos lisos e de abdômen protuberante surgiu na frente das crianças. O senhor atentamente observou  os dois e suas vestimentas. A menina de saia rodada e comprida, cintura fina, luvas. O menino utilizava uma camiseta de botões, paletó e calça levemente apertada. A moda era européia e incontestavelmente ignorava o clima cuiabano. 

– Vovô Camilo – berraram os juvenis em uníssono.

O progenitor cumprimentou seus netos, puxando-os para seu amplo lar, e os guiou para o quarto especialmente preparado. Os irmãos admiraram o aposento colorido de âmbar e os móveis ricamente decorados. O criado-mudo, uma pequena mesinha com três cadeiras e o armário aparentavam ser de imbuia. 

– Que Deus abençoe vocês – disse respondendo aos pedidos de bença que ficaram para trás – meus queridos. Preparei um lugar agradável para vocês ao receber a carta de minha filha, contando a infeliz falência de sua fazenda familiar produtora de azeite.

– Vovô, estou faminta – reclamou a moçoila Anna, acariciando seu ventre feminino em círculos.

Os três dirigiram-se para o encontro da vovó, em outro aposento. A senhora portava uma gamela preenchida por um peixe de odor muito agradável. Os novos moradores correram para perto da idosa, e abraçaram-na. 

– Vocês chegaram bem na hora para o jantar! Meu marido, poderia por gentileza organizar a mesa? Você deixou o jornal e o seu velho livro nela. Por que ainda não o jogou fora? Está com as páginas amareladas.

Camilo resmungou diante da crítica de seu precioso alfarrábio. Retirou o jornal datado em 02/12/1945, destacando as manchetes “Realizadas eleições gerais diretas para Presidente da República, Senado Federal e   Câmara dos Deputados” e “Cuiabano eleito Presidente: Eurico Gaspar Dutra recebe a faixa”, cobrindo a mesa com um pano artesanal de combinação exótica entre jaburus, violas de cocho e flores hibisco.

Sentados em uma mesa circular, a família gozou do delicioso sabor do pintado, que desmanchava deliciosamente na boca de seus apreciadores, da mesma forma que o arroz levemente tingido de amarelo pequi dissolvia lentamente ao ser degustado.

Porém, durante a refeição, Anna observava o antigo livro de folhas amarelas que localizava-se na sala em frente. A capa era de couro, apresentava uma fivela na lateral, estufado e saía de suas páginas pontas de fotos e folhas.

A menina sentia-se atraída por aquele objeto de tal forma que influenciou seu irmão a questionar sobre.

– É o meu diário, meu companheiro de aventuras na idade de vocês. Guardei muitas fotos, cartas, papéis e recordações nele também – relatou o avô. 

– Podemos ver, vô? Parece muito interessante – pediu Anna, apontando diretamente para tal.

Sentido-se desconfortável, Camilo tentou desviar levemente o rumo que a conversa havia tomado, porém acabou  complementando-a contra seu gosto.

– Creio ser mais apropriado vocês vivenciarem suas próprias aventuras, meus jovens. 

Dando por encerrado seu repasto, a idosa gorducha de bochechas coradas e cabelos grisalhos recolheu os pratos e direcionou seus descendentes para o quartinho âmbar, de forma que pôs fim também no assunto.

[Continua no próximo capítulo]

Glossário

Art decó: Estilo de decoração cujos aspectos contemplam às artes aplicadas, desenho industrial e arquitetura; tal estilo recorre aos traços geométricos, utilização de materiais comuns ou sofisticados e teve seu ápice na década de 1930, em Paris, França. 

Variegar: Dar diversas cores a; matizar, pintalgar.

Encarnado: Vermelho, rutilante, escarlate.

Inação: Inércia; falta de ação, de atividade; condição em que não há ação.

Suscitar: Ser o motivo de surgimento de algo; causar ou originar.

Amolgado: Que se conseguiu amolgar; que foi amassado; que se deformou; amassado.

Abalroar: Abalar, estremecer, sacudir, bater.

Repasto: Refeição, alimento que se toma geralmente em horas certas

"Anna observava o antigo livro de folhas amarelas que localizava-se na sala em frente. A capa era de couro, apresentava uma fivela na lateral, estufado e saía de suas páginas pontas de fotos e folhas".


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